Natural de Arez,
cidade potiguar com pouco mais de 14 mil habitantes, Edlene Freire tem 40 anos
e faz parte do quadro de árbitras assistentes da FNF e CBF. Criada e registrada
pelos seus avós maternos, teve uma infância tranquila, apesar das dificuldades
da época. Seu Clóvis Batista e dona Elita Freire eram agricultores e ambos já
faleceram, mas seus ensinamentos permanecem com Edlene e seus três irmãos,
Edileide, Aline e Alison
A criação foi
pautada pelos ensinamentos da Assembleia de Deus, da qual eram adeptos. Por
isso, em alguns momentos, as posturas eram um pouco rígidas, em acordo com os
preceitos religiosos professados pela família. “Eles foram casados por mais de
60 anos e, às vezes, pegavam no meu pé”, conta
Edlene gostava
muito de correr e futebol nunca foi o seu esporte escolhido. “Não sabia nem
chutar uma bola direito. Era muito magrela, pesava 52 kg na época e minha vida
era jogar voleibol”, diz. Com 13 anos, a adolescente jogava escondido do avô,
porque a religião praticada pela família não permitia que ela praticasse
esportes. “Minha avó, por muitas vezes, teve que me buscar no campo de areia
com um chicote e eu tendo que correr. Meu avô era do Ministério e tinha que dar
exemplo. E em relação a isso, sofri um pouco. Hoje, já está muito diferente”,
diz
Esse amor pelo
vôlei era tão grande que Edlene sonhava em ser atleta profissional. Aos 18
anos, veio para a capital do estado cursar Geologia e Mineração no Instituto Federal
do Rio Grande do Norte (IFRN), então conhecido como Cefet (Centro Federal de
Educação Tecnológica). No entanto, seu primeiro vestibular foi para Radialismo
e a área da Comunicação ainda é um ponto de interesse para ela. Quando
adolescente, por influência de seu irmão caçula, Alison, acabou voltando o seu
olhar para o futebol. Anteriormente, não frequentava estádios, nem apoiava
qualquer time
“Foi algo que
nunca passou pela minha cabeça até por volta dos 15 anos, quando ele veio para
Natal participar de um teste e começou a jogar pelo Alecrim Futebol Clube na
categoria de base. Eu já virei fã dele e torcedora do Alecrim”, explica. O
irmão foi, então, emprestado para o ABC e viajou a São Paulo para jogar a Copa
SP de Futebol Júnior, onde se destacou por lá e, quando voltou, subiu para o
time profissional do Alecrim. “Até então, eu acompanhava na torcida, xingava
arbitragem e todo mundo porque eu só via meu irmão como a estrela. Eu tinha ele
como referência”, comenta.
PAIXÃO
INESPERADA
Em um sábado
qualquer, morando em Natal com Alison, Edlene lembra de assistir a um programa
esportivo, que apresentou uma matéria sobre mulheres na arbitragem. Aquilo
imediatamente lhe chamou a atenção. “Sou uma pessoa que sempre gostou muito de
desafios. Olhei assim e disse: ‘Que legal, essas mulheres superempolgadas dando
entrevista e se destacando. Vou fazer esse curso’”. O irmão, inicialmente, foi
contra. Disse que não ia dar em nada, que era um ambiente de muito assédio. “Eu
já conhecia uma pessoa que era assistente de futebol da Federação aqui em Natal
e rodava o país também. Falei com ele que queria entrar na área para ser
árbitra central e que me avisasse quando abrissem as inscrições”, recorda
Em 2011, entrou no
curso de formação sem muita perspectiva profissional, pois sua ideia inicial
era chegar à arbitragem para ter contato com empresários do ramo e membros da
imprensa, no intuito de fazer seu irmão crescer profissionalmente. A sala só
contava com três mulheres e, dentre elas, foi a única que seguiu na área. Também
nesse momento, a situação de Alison no futebol já estava bem complicada, com
seus altos e baixos, devido à falta de oportunidade e incentivo
Alison explica que
ficou com medo. Por ser jogador, sabia os tipos de piadas e comentários que
eram feitos nos bastidores desse universo majoritariamente masculino. “Na época
que ela começou o curso, achei um pouco estranho. Atuava profissionalmente e
não era comum
ver mulheres na
arbitragem. Logo no início, até pedi para ela não continuar, porque era algo
raro mesmo, mas vi que era o foco e objetivo dela. Hoje, tenho a certeza de que
é uma das melhores do nosso estado. Tenho orgulho do que ela se tornou”,
comenta.
O começo das
atividades foi tranquilo. Desde os 16 anos, Edlene faz musculação e seu porte
físico ajudou na parte prática do curso. A teoria foi uma dificuldade,
precisando redobrar o estudo das regras do futebol. Na hora de decidir sua
posição, as experiências com o apito mostraram que se sentia mais confortável
na linha. Dessa forma, optou por focar na “bandeira”, expressão que comumente
se refere aos assistentes de arbitragem. Sobre essa fase, Edlene é bem sincera:
ainda não gostava muito do curso e estava fazendo “por fazer”
Quando terminou a
formação em 2012 e passou a estagiar, as dúvidas continuavam presentes. Ainda
insegura sobre a atuação, os jogos no Juvenal Lamartine e a presença da torcida
mexeram com Edlene. Até então, revela que ninguém, além do seu avô, a apoiava
nessa nova empreitada. “Ele sempre ficava na dele, calado, mas eu sentia que
ele tinha orgulho de mim. Mesmo em jogos de base, ele já conseguia escutar o
meu nome no rádio”, diz. O irmão continuava falando que não ia dar certo.
“Comecei a achar que ele tinha razão. Se você me perguntar como foi que eu não
larguei mais, não vou saber te responder. Acho que foi uma paixão que veio sem
perceber. Quando me liguei, já estava encantada”, explica.
Seu primeiro jogo
profissional foi na cidade de Goianinha, no estádio José Nazareno do
Nascimento, mais conhecido como Nazarenão, entre Palmeira e Corinthians de
Caicó. “Foi uma noite tensa, um desastre. Quando saiu a escala, três dias
antes, já não conseguia mais dormir. Quando eu estava na linha de impedimento,
o professor que foi me avaliar ficava por trás dizendo, ‘Edlene, pelo amor de
Deus, você está errada’, e eu me tremia todinha pensando ‘O que eu estou
fazendo aqui?’”, conta. A tensão foi tanta que Edlene teve câimbra na perna,
mas conseguiu finalizar. “Não teve nenhum erro que prejudicasse alguma equipe,
só que fiquei bem nervosa mesmo”, relembra.
Em 2014, foi
convocada para fazer o teste da CBF, inicialmente para trabalhar no quadro
feminino. No ano de 2017, depois de um longo preparo, passou a integrar também
o quadro de arbitragem para a modalidade masculina, podendo atuar em mais
campeonatos promovidos pela Confederação. Desde então, não parou mais. “Foguete
não tem ré”, brinca. Como forma de se manter nesse nível, Edlene treina todos
os dias em preparação para os constantes testes exigidos pelas entidades.
DOAÇÃO
Depois de tantas
incertezas e desafio, hoje, Edlene diz aos quatro ventos o quanto ama sua
profissão. Porém, é muita responsabilidade, e um bom preparo físico e
psicológico é primordial para lidar com todas as influências no momento do
jogo. Essas exigências são testadas por um motivo: com elas, é possível
administrar melhor sua performance, principalmente quando há algum erro em um
lance que acaba interferindo no resultado do jogo, seja um impedimento não
marcado ou uma falta equivocada que leva a gol.
A escalação de
árbitros é papel da comissão técnica estadual e é feita por meio de audiência
pública, momento em que a capacidade técnica e a física dos profissionais são
avaliadas para determinado jogo. Isso significa dizer que a aprovação para o
quadro não necessariamente garante a atuação profissional, sendo regida por
decisões que estão nas mãos de poucos.
“Temos que estar
sempre preparadas para tudo, nunca se sabe quando uma oportunidade pode
aparecer”, diz, atenta. Hoje, a família apoia Edlene e já compartilha várias
postagens sobre ela em redes sociais. “É um trabalho em que precisamos abdicar
de muita coisa, inclusive se afastar um pouco da família, porque atuamos no
final de semana. Já passei datas comemorativas longe dos meus avós, distante do
meu filho Miguel, de oito anos, mas faz parte”, relata.
Para ingressar no
quadro da CBF, o árbitro precisa ser escolhido e encaminhado pela comissão
técnica estadual. Logo em seguida, é necessário enviar vários documentos
exigidos pela Confederação, que comprovem sua autenticidade. Também é obrigatório
ter um número mínimo de dez jogos profissionais em seu estado.
Realizados a cada
três meses, os testes acontecem da seguinte maneira: o primeiro é chamado de
“Habilitador” (habilita para a temporada) e é composto por prova teórica e
testes físicos (FIFA TEST e de composição corporal). O segundo é chamado de
“Mantenedor”, com uma nova cobrança do teste de composição corporal e a prova
física. Por fim, o “Verificador” abrange testes complementares de campo e uma
avaliação corporal
No momento, Edlene
foi escalada para trabalhar na Série D do Campeonato Brasileiro, mas tem
habilitação para todas as competições nacionais. Esses convites dependem da
comissão técnica vigente. Para ela, a situação é bem difícil. “Não vou dizer
que é pelo fato de ser mulher, para dizerem que é ‘mimimi’, mas eu acho que
hoje muita coisa mudou. As mulheres têm oportunidades, mas eu falo por mim”,
comenta.
Desde que entrou
na CBF, foram poucas as oportunidades que teve. “Estou habilitada e capacitada
com as demais, só que, infelizmente, ainda não tive as chances que muitas
tiveram. Mas é aquilo, né? Temos que estar preparadas para o que vier.
Desmotiva um pouco, fico meio cabisbaixa, mas é manter o foco e disciplina”,
desabafa.
Edlene avalia o
cenário atual como positivo em relação ao interesse e à recepção no meio do
futebol nacional. “Hoje, há mulheres atuando toda semana nas Séries A e B do
Brasileiro, vejo que temos muitas bem motivadas. Isso instiga quem deseja
ingressar na profissão. Recebo mensagens que me levantam e tenho o objetivo de
chegar à segunda divisão do Brasileirão”, adiciona.
profissionais,
menciona a estreia na Série D, que aconteceu em Recife, em 2019, bem como na
Copa do Nordeste em 2022, em jogo realizado na Bahia. Sobre a partida do
campeonato estadual entre Assu e Potiguar, com o trio totalmente feminino,
Edlene comenta que foi um de seus melhores jogos.
“Me senti tão
responsável por essa partida e foi uma arbitragem tão gostosa! Eu pensei,
‘Cara, eu vou doar muito’. Sabia da pouca experiência de Mari e disse ‘Vou
apitar com ela!’. Já a Luciana, é muito experiente. A gente comenta até hoje
que foi um dia magnífico. Fiquei surpresa pela escala e mais feliz ainda por
Mariana, porque foi um feito histórico aqui no RN”, finaliza.
FONTE - HTTPS://REPOSITORIO.UFRN.BR/BITSTREAM